
A longa travessia da humanidade, as palavras sempre foram mais do que meros signos, tornaram-se instrumentos de poder, de exclusão e, nalgumas ocasiões, de resistência. Entre elas, poucas carregam um peso tão simbólico quanto o termo “vândalo”. Sinônimo de condenação, julgamento moral e rótulo pejorativo, esse vocábulo atravessou séculos como uma marca de desumanização do outro, do insurgente, daquele que ousa desafiar a ordem estabelecida. Desde Hipona, antiga cidade romana localizada na costa norte da África, passando pelos diversos territórios de expressão colonial em África, até chegarmos a Moçambique independente, o termo “vândalo” revelou-se perene, identificando, sempre, o inimigo da paz, nunca o filho da casa.
Em “A Vida e a Obra de Santo Agostinho”, Maxwell McCombs evoca um episódio paradigmático da antiguidade, datado de 430 d.C.: a invasão de Hipona por um grupo de bárbaros chamados “vândalos”. Para o povo romano, na doutrina de Santo Agostinho, eles simbolizavam o colapso da civilização e o avanço do caos. “Vândalos, vândalos, bárbaros…” ecoava nas ruas, enquanto o sangue escorria entre os paralelepípedos. Porém, no auge da desgraça, Agostinho fez aquilo que hoje parece cada vez mais raro: buscou o diálogo com Genérico, o rei dos “vândalos e alanos”. Ele confiou na palavra como instrumento de mediação, não de condenação.
Esse gesto revela um traço essencial da política: o verbo, quando justo, pode salvar vidas. Mas, quando corrompido, pode destruir nações. E é precisamente essa corrupção discursiva que hoje ameaça a nossa convivência moçambicana. “Somos uma família.” Esta frase é repetida vezes sem conta nos discursos institucionais. Mas é uma família curiosa, onde os pais (governantes) chamam os filhos (cidadãos) de vândalos, onde os irmãos desconfiam uns dos outros, onde os céus, outrora sábios, transformaram-se em tiranos verbais.
Na tradição moçambicana, quando há conflito, os mais velhos reúnem-se, debatem, ouvem os mais novos e procuram a reconciliação. Mas, hoje, os mais velhos gritam pelo megafone do poder, acusando os jovens de destruição. A escuta transformou-se em monólogo. O diálogo deu lugar à repressão. E o povo? Passou a ser o bode expiatório de um sistema que não o protege, não o ouve, e cada vez menos o representa.
A palavra “vândalo” não é neutra. Foi construída historicamente como símbolo de desordem, selvageria, ignorância. Mas quem decidiu isso? Quem teve o poder de escrever a história com tinta que não mancha as próprias mãos?
No século V, os vândalos apenas buscavam um espaço para se emancipar e, no entanto, foram eternizados como destruidores. Séculos depois, os africanos que resistiram ao colonialismo também foram chamados vândalos. E hoje, em 2025, os jovens moçambicanos que marcham por eleições justas, que gritam contra a fome e a desigualdade, recebem a mesma alcunha. Ironia? Não. Estratégia.
Michel Foucault, ao estudar o poder, mostrou-nos que quem controla o discurso, controla a realidade. Ao chamar os manifestantes de vândalos, o regime transforma a vítima em agressor. Invisibiliza a dor, deslegitima a reivindicação, justifica a repressão. Assim, mantém-se o ciclo: pobreza-protesto-repressão-pobreza. É a roda que gira.
Os meios de comunicação oficiais amplificaram essa palavra. As redes sociais contra-atacaram. E a batalha deixou de ser apenas nas ruas, foi travada no domínio do discurso, do simbólico. A verdadeira guerra não é mais pelos bens saqueados, mas pelo controlo da narrativa.
Mas afinal quem são os verdadeiros “vândalos”?
Pensemos juntos: pode um pai chamar o filho de vândalo? Pode um Estado que não provê segurança, emprego, saúde e dignidade acusar o povo de ingratidão? Quem vandaliza mais: o jovem que quebra um vidro por desespero, ou o político que desvia milhões que poderiam alimentar milhares? O conceito de vandalismo precisa urgentemente de ser revisto, reapropriado, desconstruído.
A nossa geração já não precisa de tochas. Um tweet, um vídeo, uma publicação, tem o poder de abalar estruturas. O povo aprendeu a comunicar-se por meios alternativos. Afinal, o tempo dos muros altos e ouvidos surdos já passou.
Chegamos, enfim, à encruzilhada. Podemos continuar a alimentar o ciclo de exclusão, criminalização e desumanização. Ou podemos optar pela escuta, pelo reencontro, pela reconciliação. A verdadeira pergunta não é: “Como impedir os vândalos?”, mas sim: “Como recuperar a confiança entre os membros desta casa chamada Moçambique?”
O vandalismo, muitas vezes, é apenas o grito desesperado de quem já perdeu tudo, menos a esperança. E talvez, se escutarmos esse grito com empatia e humildade, possamos finalmente reconstruir a família moçambicana. Não com insultos, não com repressão, mas com diálogo, justiça e verdade.
Neste sentido, o recente encontro entre o Presidente da República e o auto-intitulado “Presidente do Povo” pode ser visto como um passo tímido, mas simbólico, na direcção de um entendimento para a paz. À semelhança de Santo Agostinho, que em tempos de conflito escolheu dialogar com o rei vândalo Genérico, hoje o governo parece assinalar a importância de apostar na palavra como ponte para a paz, mesmo que essa própria estrada esteja longe de levar-nos ao destino almejado.
A proposta deste ensaio não é apenas crítica, mas também construtiva. Propomos um trabalho de campo sério, profundo e humano. Ir aos distritos. Ouvir a população. Entender a raiz do desentendimento. Se outrora fomos uma nação unida pela luta contra o colonizador, por que hoje nos dividimos perante desafios internos? Quando foi que nos esquecemos de olhar uns para os outros como irmãos?
Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Jornalista e pesquisadora. Licenciada em Jornalismo pela Escola Superior de Jornalismo em Moçambique. CV no Lattes: https://lattes.cnpq.br/03b24b205639338